Os filhos
por Licínia Quitério
A cabeleireira tem um filho que não quer comer. Não quer comer ou não quer que a mãe queira que ele coma. Só quer o tablet que o tio lhe ofereceu para ver os bonecos tão feios, mas de que ele gosta muito. É tão engraçado ver como ele já sabe mexer naquilo com os dedinhos gordinhos a deslizarem para cá para lá e os bonecos horríveis a fazerem caretas, a gritarem. O que vale é que ele lá vai mastigando enquanto joga com os bonecos.
A cliente tem um filho que também não quer comer. Não quer, mesmo que a mãe finja que não se importa. O filho da cliente ainda é mais difícil. Também tem o vício do tablet, mas nem assim come. Um problema. Já teve vontade de atirar o aparelho pela janela, mas quando pensa no que pagou por ele desiste e acalma-se. As mães de hoje sofrem muito para conseguirem que os filhos comam, ainda que lhes dêem tablets.
Ao ritmo da conversa, o secador ganha asas, desprende-se do fio, voa em redor dos cabelos da cliente. (excepto daqueles que a tesoura fez sobrar e se agarram aos sapatos como tufos de erva recém-cortada).
Que bom! A cabeleireira não está só, porque a cliente tem um filho igualzinho ao dela. (muito menos bonitinho, diga-se). A cliente não está só, porque a cabeleireira tem um filho parecidíssimo com o dela. (salvem-se as devidas distâncias).
Está eficazmente abordado o tema das crianças que não querem que as queiram comedoras.
Podem então passar a outros assuntos não menos importantes, dir-se-ia imperiosos, como o (des)aproveitamento escolar dos filhos (todos tão espertos, mas terrivelmente distraídos) ou os novos perigos que os espreitam em cada esquina.
Terminado o trabalho, a cliente sai com a cabeleira arrumadinha, a cabeça aliviadinha, e as crianças vão continuar a comer apenas quando querem.
Tudo tão fácil, afinal. O mundo concertado no círculo exacto da rotação da cadeira de napa cinzenta com um amoroso friso cor-de-rosa.
Só mesmo os tufos dos cabelos sobrantes marcam o sinal do desalinho, até que a vassoura, empreendedora e obediente, os agrupe, os retire suavemente, escrupulosamente, para o balde do lixo.
Ordem é precisa para que a função social-médico-temperamental de um salão de cabeleireiro se cumpra, ainda que as crianças continuem a ser um problema quando não querem comer quando as mães querem que elas comam.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Adorei, fez-me sorrir, ainda que eu nuca tenha conhecido esse problema, com os meus 3 filhos glutões…